quinta-feira, 12 de julho de 2012

O Eremita Urbano


Observa atentamente a movimentação na selva de pedra, através da janela de sua caverna-apartamento. O eremita urbano precisa se ausentar dela, por motivo de força maior. Não gosta disso, mas é preciso. É obrigado por uma necessidade do mundo real a se desacorrentar da janela virtual. Através dela consegue viajar a outros mundos que não lhe pertencem, mas que consegue explorar assumindo a alma de um guerreiro elfo. O mundo do qual realmente deveria pertencer não lhe interessa, por isso não o explora como deveria fazer. Entretanto, a bebida mágica de seu mundo acabou e ele deve obter mais. Sem essa bebida, seu corpo não irá suportar o momento de transposição para outros mundos. Precisa ir comprar mais pó de café se quiser virar a noite jogando RPG. Não pode demorar muito, falta pouco tempo para que a tão esperada rodada final comece e há uma reputação a defender. “Já está escuro lá fora, tenho que ir”, diz esperando por um lampejo de coragem. Sua barba está por fazer e em sua camiseta há uma grande mancha de café de duas noites atrás. Mas sua aparência pouco importa. É um dos guerreiros mais fortes do mundo mágico, no mundo real, apenas um eremita urbano. Arma-se apenas de seu relógio banhado a ouro, a coisa mais valiosa que possui neste mundo. “Tenho que estar de volta em uma hora”, tempo marcado para completar a sua missão.

O eremita urbano precisa avançar pela trilha que adentra a selva de pedra para chegar ao seu destino, a área de coleta de itens essenciais para sobrevivência, o supermercado. “Vinte minutos para ir, vinte minutos para voltar”, olha para seu relógio e demarca, o eremita não se sente à vontade neste mundo. Achava que à noite não haveria tanta movimentação, mas há vários de sua espécie dividindo espaço com ele nesta trilha. O céu dominado pelas trevas, este é o cenário em que os outros de sua espécie revelam suas verdadeiras intenções, um jogo entre caça e caçador. Nunca confiou em outros caçadores, talvez por isso tornara-se eremita urbano. O frio da noite se intensifica a cada caçador que cruza o seu caminho. Não consegue enxergar seus rostos, apenas borrões amedrontadores que lhe causam angústia. Prefere desviar o seu olhar para o relógio ao invés de encará-los. “Vinte mais vinte, quarenta minutos”, a aflição em explorar este mundo se intensifica.

Finalmente chega ao seu destino. O que deveria ser traduzido em alívio se transforma em mais aflição: supermercado lotado. Normalmente não haveria muitos de sua espécie em busca de itens para sobrevivência, justamente neste horário. Por isso frequentava o supermercado apenas tarde da noite. Foi traído pela certeza. Uma promoção relâmpago atraiu vários caçadores, que avançaram nos produtos como um grupo de urubus que cerca uma carcaça. “Não se pode confiar neste mundo, ele está repleto de armadilhas”, lamenta o eremita urbano. Não estava preparado para lidar com elas. Com seu precioso pó de café em mãos, restava agora enfrentar uma enorme fila para pagar.

Esconde sua fúria por detrás de uma séria expressão facial. Se estivesse armado de sua espada de guerreiro elfo, aniquilaria a todos que estavam em seu caminho sem pestanejar. Mas estava no mundo errado, no papel errado. Aqui é eremita, apenas isso. Nada poderia fazer, a não ser esperar. Dez, vinte, trinta minutos se passam. Seu relógio dourado parece ser uma bomba-relógio. O eremita é o pavio, que está prestes a explodir em ira profunda. Falhou em completar a sua missão. Quer realmente desferir golpes mortais em seus concorrentes de fila, mas não tem a coragem necessária para tal feito. “Covarde, covarde”, diz a voz em sua mente. Cedeu a pressão deste mundo que tanto despreza. Queria ser também um guerreiro neste mundo, pois um solitário eremita é facilmente derrotado pelos demais. Enfim é atendido, mas nem mesmo isso é capaz de apagar sua frustração. É hora de pegar a trilha de volta para a caverna-apartamento.

O eremita urbano anda a passos largos para chegar em casa. Apesar de já ter perdido o início da partida de RPG, seguia confiante pela trilha, que já estava deserta. “Um, dois, três, quatro minutos”, continuava a contagem de seu relógio dourado. Ainda havia a possibilidade de participar do jogo. Seria a redenção de um guerreiro que todos achavam estar morto, mas que renasce e derrota todos os seus inimigos, mesmo estando em total desvantagem. Derrotaria todos os elfos das trevas. Não havia mais ninguém na trilha para encará-lo e mesmo se houvesse ele não iria temê-los. O guerreiro tomara a alma do eremita, não o contrário. Bastava chegar em casa. Entretanto, até mesmo o mais valente dos guerreiros esta suscetível a armadilhas. Um inimigo surge das trevas: - E aí tio, relógio maneiro esse daí, é puro ouro?

O guerreiro é seguido por um elfo das trevas. Ele é ignorado, mas insiste em desafiar o guerreiro: - Vai responder não? Então vai passando aí, perdeu mermão! - O inimigo apresenta sua arma, uma faca. O guerreiro está em desvantagem, está armado apenas de sua valentia. O melhor entre os melhores guerreiros nunca deve se entregar. A luta aparenta ser possível de se vencer, mas o guerreiro ainda apresenta traços de eremita. Não possui a força necessária para lutar. Um golpe. Sangue espalhado pela trilha. O guerreiro é derrotado neste jogo entre caça e caçador. Sua alma é dissipada pelas trevas. O eremita urbano ousou explorar o mundo do qual deveria pertencer. Agora só a morte lhe pertence. Fim de jogo.


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